sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Mykura i apgáua

Esta lenda foi colhida por Couto Magalhães, e publicada em seu livro, 'O selvagem', como exemplo de uso do tupi moderno.[1] É parte de uma série de lendas sobre raposas, as quais, como nas fábulas gregas e latinas, são exemplo de que quem é 'esperto' nem sempre termina bem. Nesse papel, nas lendas colhidas por Magalhães, revezam-se os macacos, as onças e as raposas. 
Nesta fábula, a raposa brinca com a piedade de um homem, que, na primeira vez enterra a raposa, na segunda vez a cobre com folhas, na terceira vez, a tira do caminho e na quarta vez a amaldiçoa e a joga nos espinhos.
A fábula apresenta estrutura narrativa tipicamente oral, com alternâncias constantes no tempo verbal, comum nas sögur islandesas. Com efeito, um aspecto que dificulta a tradução de textos com tal caracteristica é a irregularidade, aos olhos da língua escrita erudita, na formação do tempo verbal. Torna-se um desafio concordar os tempos, de modo a fazer clara a idéia do texto. Observe-se o texto da saga dos volsungos, no momento em que o herói Sirgudr mata a serpente Fáfnir: " Ek er Ormrinn skreið yfir grófina, þá legger Sigurdr sverdinnu..."[2] A tradução literal dos tempos verbais indicaria : "E que a Serpente rastejou sobre o rego, então  golpeia Sigurdr com a espada..."[3]. Assim como em nórdico antigo, também há tal inconstância nos textos em tupi moderno. Na fábula apresentada, temos "Umutyrica a´e pé suí, upupeká ka´a irumo, usu ana.", que, traduzidos os tempos verbais, seria: "Tira-a do caminho, cobre-a com folhas, foi". Em nhe´engatu, porém, o presente e o pretérito se confundem. Alguém poderia utilizar deste argumento para afirmar que o texto todo está no passado. Devido à existência, no entanto, da partícula -ana, no fim do verbo usu, indica que essa ação encerra a série de ações, e esta, principalmente, está no pretérito. Isto anularia a necessidade de se por os outros verbos no pretérito, dado o sentido de pretérito que, além do verbo, o contexto, uma história se contando, e o gestual do narrador. Utilizando destes pressupostos, traduzimos a fábula como se segue, utilizando dos tempos verbais em seqüência: presente e após futuro, onde assim se indica no texto original. Também optamos por utilizar pessoas definidas no texto, posto que no texto não há indicação de que seja mais de uma raposa. Diz-se apenas 'Mykura uiana', enquanto está claro que é um único homem que encontra a raposa. Por ser um texto de expressiva oralidade, preferimos por utilizar um português padrão mais coloquial para a tradução.


Mykura i apgáua


Mykura usu uieno maarupi apgáua usasau arama uaa, uiumanu. Apgáua uuri, unhee:

--Mikura, taité!

Umunhã quára, uiutyma a´e, usuana. Mykura uiana ka´a rupi, usu uiene tenoné apepe¹, uiumanu ana.
Apgáua usyka ramé, unhee:
--Mykura ambyra iuyre!
Umutyrica a´e pé suí, upupeká ka´a irumo, usu ana. Mykura uiana iuyre iaytyua rupi, usu uienõ tenoné pépe.
Apgáua usyka unhee:
--Auata uiucáiucá² kuaa mykura itá?
Umutyrica a´e pe³ suí, usu ana. Mykura uiana iuyre iaytyua rupi, usu uienõ tenoné pépe, uiumanõ ãna.
Apgáua usyka ramé, unhee:
--Tatá usapí upai rupi!
Upysyka suaia rakapira rupi uiapyana mykura iaytyua resé. Aramé mykura unhee:
--Inti katú iamumaraári auá supé umunhã katú uaá iané arãma. Usu ãna
¹-Apócope de Tape;
²-Literalmente, matamatando, forma de gerúndio a partir de reduplicação;
³-Apócope de Tape



A raposa e o homem

Uma raposa vem se deitar pelo caminho que um homem tem de atravessar, e se finge de morta.
Vem o homem e diz:
--Coitada da raposa!

E faz um buraco, a enterra, e se foi
A raposa corre pelo mato, vai se deitar no meio do caminho, e se fingiu de morta.
Quando o homem chegou, disse:
--Outra raposa morta!

E a retira do caminho, a cobre com folhas e se foi.
A raposa corre pelo cerrado, vai se deitar no meio do caminho.
Quando o homem chegou, disse:
--Quem está matando essas raposas?
Retirou-a do caminho e se foi.
A raposa corre pelo cerrado, vai se deitar no meio do caminho, e se fingiu de morta.
Quando o homem chegou, disse:
--Queime tudo fogo!
Pega pela pela ponta da cauda da raposa e a joga no cerrado.
Depois, a raposa diz:
--Não é bom cansarmos a quem nos faz bem.
E se foi.

1-Magalhães, Couto. O Selvagem
Rio de Janeiro, Typographia da Reforma, 1876
2-http://www.septentrionalia.net/etexts/volsunga.pdf
Acessado dia 20 de dezembro de 2010 às 11:16

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